O ultramaratonista Marcos Gagliardi esteve presente na edição 2012 da Comrades, no dia 3 de junho de 2012, e nos contou como foi esse desafio de correr os 89,2km da prova, que acontece na África do Sul.
Tudo começou em 2011, mais precisamente em Abril, feriado de Páscoa, onde estive na África para participar na Ultramaratona Two Oceans na cidade de Cape Town. Aliás uma linda cidade e a Ultramaratona também maravilhosa. Essa seria minha 3ª Ultramaratona e não imaginava até ali correr a Comrades, porém, terminei tão bem, os 56km da Two Oceans, “inteiro”, sentindo tão bem, que sabia que tinha forças, fôlego para muito mais…
Aí, veio a pergunta: Porque não a Comrades em 2012? Foi nesse momento, que começou meu “casamento” com esse objetivo único, correr os 89,2 km Comrades Marathon. A Comrades Marathon na verdade é uma Ultramaratona que começou em 1921 com 34 corredores determinados e correram de Pietermaritzburg para Durban na África do Sul. Este evento se tornou tradicional e a cada ano tem crescido de 34 para mais de 19000 corredores atualmente. A Comrades atrai além de milhares de corredores, milhares de espectadores e telespectadores a cada ano. É um grande evento na África do Sul.
Início dos treinos específicos
Janeiro de 2012, estava no ano do meu objetivo, agora toda preparação física e mental está voltada a Comrades. Nos meses de Janeiro e Fevereiro fiz um bom trabalho de base com algumas provas chaves como a Volta ao Cristo- em Poços de Caldas e Meia Maratona de São Paulo.
Os treinos específicos tiveram início em Março, muitos treinos em subidas, descidas, serras, além de academia (musculação, bicicleta), enfim, foram 8 treinos acima dos 28km (os longões) fundamentais para plena adaptação física e psicológica a grandes distâncias. Entre
os treinos de qualidade destaco a maratona da linha verde na cidade de Belo Horizonte, foi um ótimo treino, onde o traçado da maratona contribuiu para que o treino seja coerente a Comrades, corri pouco mais que uma maratona terminando a prova com 50km rodados. Estava bem confiante, porém com a aproximação do grande dia, 3 de junho, tinha que trabalhar o lado psicológico pois fisicamente me sentia muito bem, porém medo de lesão, infecções(resfriados, gripes) me acompanhava. Todo cuidado era sim necessário e tudo nesse momento a menos de 30 dias da prova faz parte do treino.
Tinha estudado o percurso, altimetria, e conversado com atletas conhecedores da Comrades. Na parte do treino chegou a hora de reduzir o volume treinos, estava a 15 dias da prova e a ansiedade aumentava.
A viagem
A viagem do Brasil a África do Sul, foi tranquila e rápida, pouco mais de 8h até Johanesburgo e conexão para a cidade de Durban mais 1h. Chegamos dia 31 de maio, o grupo de brasileiros estava em torno de 70 corredores. Estava bem e tranquilo, já estava lá, agora são os últimos preparativos antes do grande dia…
A feira da Comrades é atraente ( em preço e variedades, muitas roupas, assessórios de corridas, suprimentos alimentares , etc..).
2 de junho
Véspera da prova, viagem para a cidade de Pietermaritzburg, onde será largada. “Dormimos” no hotel bem próximo da largada, aliás, é muito difícil dormir, só deu mesmo para descansar um pouco, pois o despertar é bem cedo…
O grande dia
3 de junho de 2012, chegou o momento esperado a tempos. Estava muito bem e confiante, fomos a largada….
A Comrades
Muita gente na largada, a prova teve a participação de 19.545 corredores, é como se fosse a nossa São Silvestre, mas de quase 90km…
Entrei na minha baia e quando terminou os hinos, tocou a música que é quase um hino tradicional em corridas a “Carruagens de Fogo”, depois com o cantar do galo (tradicional, claro que o cantar é uma montagem, relembrando as primeiras Comrades ) e o tiro de canhão, dando aí inicio a Comrades 2012…
Ainda estava escuro, às 05h30min comecei a longa jornada rumo à cidade de Durban. Muita concentração na largada iniciei bem e com cuidado os quase 90 km da Comrades, fazia muito frio, aproximadamente 6°C. Eram muitos corredores e quase não se conseguia correr no início, lembrava muito a corrida de São Silvestre em São Paulo em número de corredores. Desde o inicio procurei manter o ritmo de corrida para a Comrades. Todo cuidado e atenção nos primeiros 5 km de corrida, pois muitos corredores jogavam suas blusas, mantas na pista / rua e como estava escuro, tropeçar em algumas delas poderia levar a um tombo. E foi isso que presenciei com alguns corredores menos atentos, caindo, tropeçando nas roupas jogadas no inicio da corrida, eu mesmo quase tropecei em uma das várias blusas (quebra vento) pretas cedidas no kit aos corredores. Mas tudo bem, o dia foi clareando aos poucos.
Na Comrades a marcação dos quilômetros é feita em ordem decrescente, 89 km…. 87km…o que para um fator psicológico do corredor achei bem interessante… No km 85, avistei um clarão, logo após uma breve subida, seria o sol? Não… não era o sol, e sim uma luz que quase chegava a cegar de tão forte, vindo em direção aos corredores, era um refletor de luz. Ainda estava no inicio… e as seguidas subidas e descidas já se apresentavam, sabia que iria ser assim, subidas e descidas constantes até o final… Ainda fazia frio, eu continuava com duas blusas leves de corrida, até que no km 7, então joguei umas das blusas em direção a um garoto franzino que estava assistindo, que prontamente agarrou a blusa. Aliás muitas pessoas da população, no inicio da prova, estavam ali para receber as blusas que eram jogadas no acostamento pelos corredores.
O percurso da Comrades é repleto de subidas e descidas e pode ser descrita por cinco grandes colinas as “Big Five hills”, a ordem dessas colinas em 2012 é : Polly Shortts, Inchanga, Botha’s Hill, Fields Hill e Cowie’s Hill. Dessas colinas, três delas são encontradas na segunda metade do percurso.
Logo no km 8, depois de subidas e descidas constantes, vem a primeira grande descida de aproximadamente 2km, é uma fase de preparação para primeira grande colina o Polly Shortts. Desci bem, com cuidado e atenção já totalmente concentrado na prova, passado a euforia do início. Em seguida uma subida de pouco mais de 1km e nova descida curta, até então iniciar a subida da primeira grande colina Polly Shortts.
Ainda fazia frio, agora era superar 7 km de subidas até o ponto mais alto da corrida (870m), situado na estrada Umlaas, já no km 19 da Comrades. Ventava muito e em alguns trechos era obrigado correr segurando o boné, qualquer distração podia perdê-lo.
Em vários pontos da estrada havia aglomerados de pessoas torcendo, aplaudindo os corredores, a própria organização da prova organiza alguns trechos onde os ônibus, carros podem parar, e ver os corredores. Até uma bandeira do Brasil eu vi em um dos trechos do percurso. Todos estavam lá saudando os corredores, “ run, run, Brazil”, ouvi várias vezes pessoas falando Brasil. Isso me motivava ainda mais…muito bom! Era incrível ouvir o nome do “Brazil”, incrível como a bandeira do Brasil que levava estampada no meu shorts era reconhecida, mesmo em lugares distantes do percurso…
O percurso se mantinha em subidas e descidas não tão acentuadas, o vento persistia, mas não estava tão frio, já no km 23, era hora de iniciar a alimentação por gel. Também do km 25 quando passava por uma vila, deixei minha blusa, agora sim estava mais calor, nesse ponto meu ritmo aumentou, estava correndo leve, e curtindo todo o evento.
Já perto de Inchanga na segunda grande colina, a corrida passou ao lado de uma escola de crianças deficientes a Ethembeni School, onde as crianças ficavam ao lado da estrada animando os corredores com palavras de incentivo. Isso foi muito emocionante, posso dizer que nunca vou esquecer esse momento, um momento de pura reflexão.
Umas das peculiaridades da Comrades é o excelente sistema de abastecimento. Praticamente a cada 1,5km em média há postos de abastecimentos amplos, com água (gelada e na temperatura ambiente), isotônico e refrigerante. Tudo muito bem distribuído, sem tumulto.
Em alguns postos de abastecimento também havia serviços médicos e de fisioterapia, gelo, massagem para quem precisar. Também frutas como banana, bolachas e batatas eram distribuídas. Até a população participava montando verdadeiras bancas de café na frente de suas casas, com pães e batatas. A Comrades é uma verdadeira festa da população local, todos ficam vendo, apreciando, incentivando cada corredor, por todo lado sempre tinha alguém aplaudindo… A Comrades é um corrida diferente, é um evento único, um tesouro para os Africanos.
Em muitos setores de abastecimento sempre tem algum show musical sendo apresentado, normalmente frutos da cultura local. Tudo muito bom. Na Comrades existem 6 pontos de cortes: Cato Ridge (10h40 ); Drummond (meio da prova) (11h40); Winston Park (14h00); St John’s Avenue (15h30); Sherwood/45th (16h50). Caso o corredor não alcance esses pontos antes do horário determinado, a estrada é fechada e o corredor deve se retirar da prova. O ultimo corte é na chegada, é as 17h30, ou seja limite de 12h e o corredor é impedido de cruzar a linha de chegada e convidado a deixar a pista.
Passei pelo primeiro ponto de corte, no km 30 aproximadamente, com uma vantagem de quase 2 horas para seu fechamento. Eu seguia mantendo o ritmo, nas constates subidas e descidas, até que no km 40 estava na segunda grande colina a Inchanga. Iniciei uma subida de pouco mais de 2 km, muitos , muitos corredores caminhavam e de forma gradativa a subida ia acentuando a inclinação faltando 1 km para o topo, posso dizer que a inclinação era forte, eu estava preparado. Durante a subida uma linda paisagem se apresentava no horizonte, o que dava mais motivação. Cheguei no topo cansado, fazendo a curva no alto do morro, passei pelo km 42, pensei já fiz uma maratona… iniciando então a descida íngreme de aproximadamente 3km, que apesar de toda cautela, pude sentir as primeiras dores nas pernas. Metade da Corrida já tinha sido superado, estava no km 45 ( em Drummond), passando por mais posto de abastecimento, uma verdadeira festa, músicas, público aplaudindo e mais uma vez avistei uma bandeira do Brasil na multidão, que vendo a bandeira em meu shorts logo gritavam “Brasil.. vamos..!!”
Estava curtindo muito a corrida, passando pelo segundo posto de corte com vantagem de 1h40minutos e vinha uma forte subida em sequência, era a terceira grande colina a Botha’s Hill, uma subida muito severa e constante de aproximadamente 2,5km e mais algumas
descidas e subidas sucessivas, sendo esse sim um dos trechos mais complicados do percurso da Comrades, nem deu tempo de respirar o final da Inchanga para praticamente juntar com a colina a Botha’s Hill.
Atingi o pico da colina no km 49 e no km 53 agora sim era ladeira abaixo, muito difícil, as pernas, pés já castigados de tantas subidas e descidas tinha agora que enfrentar uma grande descida. Neste local vemos grandes casas de campo e multidões de ambos os lados da estrada.
Num trecho onde predominava descidas passei pelo km 56, que para mim era um marco importante foi a distância da minha ultima ultramaratona a “Two Oceans” em Cape Town. O percurso seguia em sucessivas descidas e pequenas subidas, mas descer era muito pior, o desgaste já grande ia aumentando e ainda faltavam 30 km para o final. Os músculos das pernas e o joelhos doem, o esforço para descer foi grande. No km 64 entramos na rodovia principal, bem larga, com várias faixas de rodagens de veículos, iniciava mais uma grande descida de aproximadamente 10 km, rumo a quarta grande colina. Passei pelo terceiro posto de corte ( Winston Park) com uma vantagem de 1h 30min para o seu fechamento.
Neste momento, meu objetivo era conseguir a medalha de Bronze, medalha essa oferecida aos corredores que concluem a Comrades com o tempo de 9 h até sub 11h. No km 74, inicia a quarta grande colina a Fields Hill, depois de uma curta e raro trecho quase plano, uma subida de 1km aproximadamente seguido de mais uma longa descida. Cada quilometro demorava para passar, chegava a quinta e ultima colina a Cowie’s Hill que em comparação com as outras colinas não era tão difícil, mas depois de 81km qualquer subida ou descida torna-se bastante complicada e desafiadora. Essa colina com 1 km de subida e outros 1,5km de descida fecha o ciclo de colinas. Nesse instante o desgaste era grande, sentia os músculos latejando de dor, a vontade de vencer era maior, muito maior que qualquer dor.
Após uma breve descida, cheguei ao ultimo posto de corte antes da chegada em Sherwood/45th, olhei bem para ele, e gritei: Vou conseguir!
Logo após vinha uma surpresa, no km 84 aproximadamente um forte subida, era uma rampa de 200m, muito inclinada, todos os corredores caminhavam nesse trecho, foi complicado, tive que caminhar por uns 400m e voltei a correr contando os quilômetros. Faltando quase 3km para o final a ultima subida era um grande elevado que dava ligação para a grande reta rumo ao estádio da chegada.
Olhei o relógio estava com 10h22minutos de prova, peguei o último saquinho com água ( água, refrigerante e isotônico na Comrades são fornecidos em saquinhos plásticos), forcei o ritmo faltando 2km para o final, entrei no estádio lotado, uma grande emoção toma conta, o público nas arquibancadas bem próximos a pista aplaudia os corredores, menos de 200m para a chegada, muita emoção, ouvir a palavra “ Brazil”, muito bom…
Consegui!! Cruzei a linha de chegada com 10h e 45min (tempo bruto), que me garantiu a primeira medalha da Comrades, a medalha de Bronze.
Correr a Comrades Marathon é um verdadeiro casamento onde a dedicação, alto grau de superação, perseverança vai ser colocado a prova. Estar em uma Comrades não significa apenas treinar, correr, é muito mais, é uma experiência de vida de pura superação de todos os medos e desafios, é vencer a sim mesmo.
É uma experiência única! Esse casamento começa 5, 6 meses antes com treinamento específico rumo ao grande dia, o dia da corrida. O corredor deve estar disposto a meses de duros treinamentos e dedicação ímpar. Momentos únicos de garra e emoção.
Eu estive lá! E posso garantir que vale muito a pena! Comrades Marathon ! 89,2km. The Ultimate Human Race…